10.9.06

País Anormal

Do Josias de Souza, em seu blog.

É insuportável a normalidade que permeia a atual campanha eleitoral. Algo de muito anormal precisa suceder. Sob pena de o eleitor tomar por natural o que é absurdo. Quem não quiser perder a compreensão do que está acontecendo deve levar em conta o seguinte: PT e PSDB são prisioneiros de um mesmo paradoxo. Prometem a modernidade de braços dados com o arcaísmo.
Adversário do tucano José Serra na disputa pelo governo de São Paulo, o petista Aloizio Mercadante costuma dizer que, se prevalecesse a lógica, PT e PSDB deveriam ser aliados, um dando suporte ao outro no Congresso. O raciocínio parte do pressuposto de que as duas legendas constituem o que de melhor a política brasileira foi capaz de produzir.
De fato, olhando ao redor não se encontra no quadro partidário nada menos ruim do que PT e PSDB. Porém, o ideal político dos dois partidos passou a ser a destruição mútua. Travam uma gincana de imoralidades. Um tenta impor ao outro o troféu de campeão das transgressões éticas. Poderia ter sido diferente.
Em depoimento a Denise Paraná, levado à página 114 do livro “Lula, o Filho do Brasil”, o atual presidente relembrou: “1978 foi o ano em que eu, pela primeira vez, assumi uma posição política pública. Foi o ano em que nós montamos um grupo de sindicalistas e fomos procurar o Fernando Henrique Cardoso, dizendo que nós queríamos apoiá-lo para senador. E fomos para as portas de fábrica defender o nome dele (...). Trabalhamos que nem uns condenados.”
Decorridos 28 anos, Lula e Fernando Henrique freqüentam o noticiário como inimigos irreconciliáveis. “Não sou igual a ele, não sou igual a ele, não sou igual a ele”, disse, redisse e tornou a dizer FHC. Nesta semana, o ex-presidente divulgou uma carta aberta em que acusa o sucessor da prática de crime de responsabilidade.
Por mais que se esforcem, FHC e Lula, PSDB e PT, não conseguirão demonstrar que são diferentes entre si. Aproxima-os o gosto pelas alianças esdrúxulas. FHC, a seu tempo, e Lula, agora, deram as mãos à fisiologia, consagrando um sistema iniciado com Tancredo Neves. Sistema que gira em torno de privilégios, negócios, verbas e empregos.
Tancredo teve a ventura de morrer antes de pôr em prática a armadilha que engendrou. Herdeiro dos acordos, Sarney honrou-os. Collor renovou-os. Itamar preservou-os. FHC vestiu-os com traje intelectual, situando-os em algum lugar entre as duas éticas de Max Weber, a da convicção e a da responsabilidade. Lula levou a anomalia longe demais.
O calor de urnas recém-abertas costuma conferir ao eleito uma aparência de super-homem. Porém, ao descer das nuvens da consagração para o chão escorregadio do dia-a-dia administrativo, o novo presidente descobre que seu poder se dissipa nos desvãos da máquina estatal. Em poucos meses, ele se vê como que governado pelas circunstâncias.
Mansamente, a fisiologia vai deixando de ser percebida como parte do sistema. Torna-se o próprio sistema. Passado o ritual da eleição, o novo gerente do velho condomínio de interesses, seja Lula ou Alckmin, cairá no colo do mesmo centrão partidário amorfo, isotrópico e inefável. O país logo estará mergulhado em sua insuportável normalidade. Ministérios partilhados, cargos distribuídos, negócios programados, orçamento fatiado.

Algo de muito anormal precisa acontecer nesse país.

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