25.12.05

Fora de Rota

.........................................................................Por Albanir Freitas

Em 21 de agosto de 1955, véspera do dia do meu nascimento, eu estava a caminho do Canadá. Não sei por que cargas d’água, talvez porque nessa época a onda ecológica já tivesse tomado conta das mentes dos povos civilizados, a cegonha que me conduzia resolveu fazer um vôo rasante sobre a Amazônia. Deslumbrado com a profusão de águas e florestas tropicais, o pobre animal foi picado por um mosquito no exato momento em que sobrevoava o município de Anajás, na ilha de Marajó. Tentou coçar-se, a fralda que me aninhava escorregou, e eu caí.
Em Quebec, meus pais ansiavam pela hora da minha chegada, mas não cheguei. Nove meses de espera resultaram em nada. Minha mãe chorou ao saber que eu nunca chegaria.
Longe de casa, assustado ao ouvir sussurros numa língua que não conhecia, tentei chorar, mas os sorrisos complacentes do casal que acabara de me adotar me desestimularam. Eram jovens, cheios de vida e suas expressões desabrochavam uma onda de esperança que me contagiou. Logo, também estava sorrindo. Pouco tempo depois, já brincava entre as palmeiras do açaizal, às margens do rio mais deslumbrante que conheci na vida.
Enquanto meus ex-futuros irmãos norte-americanos sofriam sob o frio da neve nas estepes, vestindo pesados e desconfortáveis casacos de pele de urso, eu, de tocó, corria feliz, sobre a rampa que separava a casa de um igarapé.
Enquanto meus ex-futuros irmãos norte-americanos detestavam as proteínas, vitaminas e sais minerais da alimentação balanceada que eram obrigados a comer, eu me refestelava com a farinha d’água no pirão de peixe cozido que era servido no jantar.
Mesmo longe, crescemos juntos, ligados por um sentimento obscuro de saudade, que até hoje não consegui explicar.
Nossa adolescência? Foi quase igual. Peter e Andressa freqüentavam uma escola perto de casa. Eu também. Peter e Andressa brigavam muito por conta das discussões sobre quem entedia mais de física quântica e das mudanças da matéria sob condições especiais. Eu também tinha minhas rusgas com meu irmão marajoara mais velho. Peter e Andressa tinham o futuro garantido na indústria de tecnologia de ponta. Eu também me preparava para me tornar o maior apanhador de açaí dos trópicos.
Mesmo depois que nos tornamos adultos, nossas vidas continuaram quase iguais. Peter concluiu o curso de especialização em robótica e foi trabalhar na Sony. Dois anos depois, casou-se com uma loura australiana que ganhava seu peso em ouro para tentar explicar a teoria do caos. Andressa desgostou-se dos livros e foi trabalhar numa das maiores agências de modelos de Nova York. Hoje mora em Manhatan.
Mas uma sensação me incomoda. No ano passado, quando fiquei sabendo que o tal mosquito que picou a cegonha que me transportava era transmissor da malária, vibrei de felicidade. Principalmente porque a desastrada agonizou durante uma semana... até a morte.

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