18.4.06

Beckett em Paris

Do jornalista portugues ( Correio da Manhã) João Carlos Coutinho, quinzenalmente naFolha de São Paulo.


O governo francês, como se esperava, enterrou o Contrato de Primeiro Emprego.
Sempre assim foi: quando a rua grita, o Eliseu treme. E Chirac, coitado, nunca se notabilizou pela coragem ou pela lucidez política. Paz à sua alma.
E paz à alma da França: com desemprego nos 10% (e o dobro entre os menores de 26 anos, que a lei pretendia empregar), não lhe antevejo grande futuro.O problema é que a rua não concorda. A rua e grande parte dos estudantes que marcharam nas últimas semanas por Paris, exigindo mais protecção, mais Estado, e mais protecção do Estado.
O que diria Samuel Beckett de tudo isto?
A pergunta não é absurda: centenário a semana passada, a 13 de abril, Samuel Beckett (1906 - 1989) viveu em Paris grande parte da vida e, juntamente com Kafka, foi o segundo escritor do século porque, precisamente, captou a alma do século.
Kafka conseguiu pressentir a ameaça do horror absoluto --uma sombra invisível de fechamento espiritual e moral que não chegou a sentir na pele. Beckett, sim: ele escreveu sobre as ruínas porque sobreviveu a elas.
Leio no jornalismo cultural mais preguiçoso que a literatura de Beckett é uma "literatura de fracasso". Talvez seja. Mas este cliché, como todos os clichés, transporta uma simplificação grosseira: o célebre "fracasso" de Beckett nasce diretamente da vontade humana de não desistir. De tentar novamente, falhar novamente, falhar melhor.
Se a mortalidade é a nossa única certeza, cabe aos seres humanos continuar: um gesto prometaico que, à semelhança do Sísifo de Camus, continua a rolar a pedra pela recusa do suicídio, ou seja, pela recusa da saída mais simples. Mesmo Malone, às portas da morte, entende a imperiosa necessidade de continuar.
Os estudantes de Paris, que obviamente nunca leram um dos mais importantes escritores da cidade, são a radical negação de tudo isto. Eles não querem continuar num mundo hostil que exige acção possível, ou seja, risco possível, aceitando um trabalho precário durante dois anos. Sobretudo quando trabalho definitivo é um luxo numa economia em crise.
Eles querem o retorno imaginário a um passado imaginário, feito de segurança pessoal, laboral, física e até existencial. São jovens de 24 ou 25 mas, mentalmente, inversamente, estão na casa dos 42 ou dos 52. Ou dos 62. Ou dos 72.
O horror ao risco é o traço que os une e nesse horror está um horror à vida: à natureza frágil e incerta da existência humana. De uma existência que, desde o berço, está condenada a prazo.Nas ruas de Paris, não esteve apenas uma lei trabalhista em discussão. Esteve toda uma filosofia de vida.
Pessoas existem que, apesar da violência do mundo, não prescindem da liberdade, da angústia da liberdade, e avançam. Porque, sem um mínimo de risco, os seres humanos são, como diria o poeta, cadáveres adiados.
Os meninos de Paris discordam. Eles querem segurança total porque acreditam que a vida deve ser vivida numa jaula, ou num caixão.
Eles desejam segurança total mas nesse desejo está, simplesmente, um desejo de morte.

(Para Marco Aurélio)

4 comentários:

Anônimo disse...

O jornalista portugues usa e abusa da cartilha neoliberal com o argumento clássico: para a escumalha, o bom é correr todos os riscos - por isso os estudantes da frança são retrógrados: exigem as garantias trabalhistas que o País sempre ofereceu; para os empresários, claro, toda ajuda do Estado, porque, senão, como levar adiante a economia?
Assim, os trabalhadores devem dar graças se conseguirem precários dois anos de trabalho. Os lucros dos grandes, esses devem ser mantidos à qualquer custo, sempre maiores. Afinal, que fazer, são as leis inexoráveis do mercado! Sic transit gloria mundi...

Unknown disse...

Refinado comentário,Anonimo.
Entendo o retrógrado aí como deslocado do tempo, do tempo em que não havia a cartilha.
Assim li a "jaula", ou o "caixão" de Coutinho,29, que, pelo estilo - é o segundo artigo dele que publico aqui no blog- pertence a uma classe em expansão:a dos céticos.Pessoalmente me sinto tentado a tangencia-la,quando em vez, tal a desarticulação completa que o neo liberalismo conduziu a sociedade.
E seu espírito é como resumiste: como não "amparar" quem gera empregos?
O problema, sabemos, é que tudo tem um termo,um esgotamento,um fim.
Ai de quem estiver lá,no Ápex.
Se é que não é pior assitir aos teatros de agora.
Obrigado pelo comments.

Marco Aurélio disse...

Juvêncio

Estou muito honrado pela homenagem ainda mais por se tratar de Beckett na cidade luz. Obrigado pela nota ao Boatemática e sobretudo ao abraço pelo Cacá.
Não falei no post sobre o grande dramaturgo que uma das coisas que mais me fascina em sua obra é a exposição escancarada da fragilidade da existência humana que como você disse está fadada desde o berço ao curto prazo.

Um abraço

Anônimo disse...

Vamos sair um pouco dos rótulos de "neo"-qualquer coisa, "terceira via", ou de qualquer outro apodo. Vamos aplaudir o articulista.

Quando a visão econômica é considerada o único sustentáculo da vida em sociedade, quando todos os VALORES da vida humana se subordinam ao CAPITAL, se o papel do cidadão na sociedade só é considerado relevante se passível de mercantilização, ou se sua atividade for considerada (por quem ?) "produtiva", neste quadro o artigo postado acerta em cheio.

Pequeno problema: ocorre que nós, HUMANIDADE, pobre e irrelevante espécie resultante de uma mutação genética ancestral, que gerou um bando de primatas pelados, somos o único "fator de produção" insubstituível. Essa singela verdade é empiricamente compreendida pelos estudantes de Paris, que só não utilizam os meios e as palavras rebuscadas dos doutos, que preferem ignorar esta singela verdade.

Wittgenstein estava certíssimo quando dizia que ao redor das coisas aparentemente mais simples e dos conceitos mais singelos, travam-se os maiores debates.

Até que nos substituam, seja como “fator de produção” ou como “massa de consumo”, as discussões oriundas das barricadas de Paris interessam a todos, moremos à beira do Tejo ou do Guamá.