12.1.08

Ai de ti, Belém

Por Lucio Flavio Pinto, na mais nova edição do Jornal Pessoal, nas bancas.


O jornal inicia o ano servindo-se de um dos mais pungentes textos da literatura brasileira, no mais genuíno dos seus gêneros: a crônica. A que Rubem Braga escreveu há meio século serve de abre-alas para o ano que começa. Espera-se que realmente novo. Troque-se Copacabana por Belém e a mensagem será certeira.


Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.
Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.
Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniqüidades e de tua malícia.
Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.
Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.
E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.
E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.
Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.
Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.
Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.
Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.
Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.
Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.
E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.
Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?
Antes de te perder eu agravarei s tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.
E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.
E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.
Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se
incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.
A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.
Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!

Foi assim, tomado por esse furor bíblico, que Rubem Braga começou o mês de janeiro de 1958 no alto da sua cobertura, no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Há exatamente meio século, esse capixaba de espírito forte e aparência intimidadora (um urso sentimental, como se dizia) escreveu a mais bela crônica que já li na minha vida. Ela me veio à memória, no final do ano passado, ao tomar ciência de que uma menina de sete anos se afogara na piscina do Clube do Remo, manhã já alta, e nenhum dos integrantes do “senadinho” azulino, que ali se reúne para conversar e comemorar, se levantara para ao menos ir ver a tragédia, manifestar solidariedade à família abalada pelo acidente brutal. A menina chegara ao clube com irmãos e amigos, escapara à fiscalização de todos, pulara o alambrado e nadara para a morte, absurda, inútil, mas que ali estava, materializada, sem provocar a devida comoção.
Ai de ti, Belém, pensei, tomando de empréstimo a Copacabana do cronista irado – e inspirado. Ai de ti, metrópole da Amazônia, que desconheces teus domínios, que renuncias às tuas responsabilidades, que te isolas nos altos das torres de aço e concreto, que se multiplicam, como poleiros da alienação. Ai de ti, cidade de seres frívolos, que armam-se de armaduras cômodas de griffe ao amanhecer e vão para os seus templos do corpo são em busca dos modelos sarados de Apolos sem alma. Que só circulam pela cidade em suas máquinas de muitos cavalos, com películas escuras, ar condicionado ligado, ambiente artificial (ou digital) que os protege do calor reinante na realidade para a transição entre o topo dos prédios e seus escritórios, gabinetes e consultórios, tornando-se ilhas, abstraindo o oceano humano a ir e vir nas vagas violentas. Ai de ti, Belém: de tua mediocridade, do teu eu-mínimo, de tua arrogância, de tua insensatez.
A cidade que cresce não ecoa vida. Parece que, nela, só a futilidade tem eco, ou os itens de uma agenda de ilusões e de egoísmos, que nega sua topografia e desdenha a sua história. Belém quer ser grande sem ter grandeza, quer ser líder sem criar liderança, quer aceitação sem demonstração. Não adianta propor-lhe as questões mais relevantes, de importância crucial: ela só quer ganhar dinheiro, fazer fama e deitar na cama (não por coincidência, o colchão, fabricado localmente, é o produto que se tornou mais evidente na praça).
As causas públicas foram riscadas do caderninho. As anomalias e anomias foram segregadas. Os subúrbios se tornaram depósitos de excluídos – pessoas e temas – que fluem por canais subterrâneos e clandestinos, à distância do beautiful people. Mas de vez em quando há colisões e ameaças de acidentes isolados se transformarem em crise. A proteção é mais ilusória do que real quando a pobreza e a criminalidade assumem a dimensão de tragédia. O primeiro assalto na história do Lago Azul, o primeiro condomínio fechado da metrópole, é um indicador, agravado pela postura exclusivista de quem sequer aceita contribuir para sua própria segurança e a condominial. Belém, que servia de parâmetro superior na comparação com Calcutá, hoje está passando para o patamar inferior. Lá, como aqui, as autênticas castas julgam que podem passar um impermeável sobre a miséria e colocá-la no refrigerador para congelar.
A demanda não é só na área diretamente de influência. O comando de Belém sobre o Estado é cada vez mais frágil. A continuar assim, a perda de território será inevitável – e mais breve do que parece. Que necessidade positiva o Oeste e Carajás têm da capital? Qual a serventia de Belém para eles, que só a vêem como causa de estorvos e problemas? Seria diferente se a capital lhes apresentasse um olhar reflexivo, compreensivo, de entendimento. Mas a capital investe pouco na inteligência aplicada a esse seu imenso e conturbado território. Mesmo suas elites intelectuais estão tratando é de se “arranjar”: num emprego, num cabide do poder, numa bolsa remunerativa, numa ONG de ocasião para receber verba oficial. Já não se expõem, já não freqüentam a praça pública. Querem currículo, títulos, excelências, unanimidades, sucesso, brilho.
Ai de ti, Belém do Pará: ainda há tempo de escapar da maldição que o poeta-cronista lançou sobre Copacabana. Mas não muito.

16 comentários:

morenocris disse...

Parabéns, Belém, apesar dos pesares!

Beijos.

Anônimo disse...

Bom dia, Juca querido:

meu carinho e admiração por você não foram costruídos com confetes. Há muitos elogios nessa nossa amizade, é verdade. Mas, respeito tanto você e eu, para saber que jamais viria apenas enfeitar a sua justa vaidade.

Por isso, quero dizer que seu texto é bonito mesmo, apesar da dureza, da dor, do corte na carne. Dói mais do que o de Rubem, não só porque fala de Belém, onde vivemos e onde sonhamos com uma cidade que acolha, que inspire - e nossa cidade não corresponde à esta tão simples expectativa - mas porque cada palavra, cada frase, ecoa como o som de trombetas que os ouvidos moucos jamas ouvirão.

Há tempo eu temo não haver mais futuro para Belém.

Quando vim morar aqui pela primeira vez - 1989 - senti o desconforto dela oferecer acintosamente, em bloco, o que de ruim havia nas províncias e nas capitais. E o que era bom ela só nos dava aos nacos. Aos pedacinhos e esses pedacinhos quase sempre independiam da cidade. Não são dela as águas, os ventos, nem sequer as mangueiras.

Sinto que isso se agrava, mas esta minha confusa sensação você definiu com muita clareza. Dolorosa clareza.

Beijo, querido.

Unknown disse...

Bom dia,queridona.

O Lucio vai ficar envaidecido, com justíssima razão. Devo tê-la induzido ao equívoco pela "edição" do post. É que só dispunha do itálico e do negerito para textos do Lucio e do Rubem, um dentro do outro. E acaba que ficaram um só mesmo!
Adoraria tê-los escritos. Os dois, ou só um, ou até a metade de qualquer um deles...rs
Bjão prá ti.

Anônimo disse...

Querido,

guarde o elogio. Sequer duvidei que você escrevesse coisa tão bonita. E talvez por isso, a confusão foi mesmo minha.

Mas, crédito para o Lúcio e abraço pra ele.

Beijão

Unknown disse...

Guardarei, Bia. No coração.
Bjão.

Anônimo disse...

Juvencio,
Um belo texto este do Lúcio. Foi escrito para Belém, mas traduz a realidade de todas as capitais do nosso País.É como Tolstoi: se quer ser universal cante a sua aldeia.
abracos
Ricardo

Unknown disse...

Olá, caríssimo. Quanto tempo!
Parece que a efeméride e a distância tocaram esse coração duro aí...rsrs.
Mande notícias de suas andanças, quando quiser.
Abs.

Unknown disse...

Juca,
Perfeito o texto do Lúcio nesse aniversário da mangueirosa.
Tenho experimentado uma relação contraditória com minha cidade natal. Amo Belém. Adoro o cheio da chuva de todos os dias deste janeiro molhado. Costumava parar na rua para colher os frutos que as generosas mangueiras me davam de presente (continuam dando, mas já não paro mais).
Circulo cada vez menos, afinal, tento com isso (como se possível fosse) não ser mais um número nas estatísticas reais e lamentáveis da violência. Olho com tristeza para as elites que aqui desfilam (Ah! Lúcio qta. semelhança com Rio em superficialidade e culto ao corpo). Sofro dolorosamente com o surgimento de uma geração de jovens (filhos dessa elite) - salvo pouquíssimos exemplares - sem consciência crítica, vazios e nada interessados em problematizar o destino desta cidade, deste Estado.
É Juca, querido, pode parecer que esta velha professora e jornalista que te fala aqui começou a achar que o copo está sempre "meio vazio". Não é nada disso... preservo com unhas (curtas, bem verdade) e dentes a cultura de resistência, mas apenas o eco da canção de Alcyr Guimarães se repete na minha mente: "
Olê, Olá Belém....Na janela que se abre aos meus olhos,
me embriago na tua coreografia.
Vivemos como dois aposentados
rabugentos e cansados, e até nos querendo bem...
Um abraço

Unknown disse...

AH! Não esqueci do gestor público, não...mas a minha listagem sobre o que penso negativamente desse senhor é tão grande que não caberia neste blog...por isso, prefiro não comentar!!!

Unknown disse...

Oi, professora.]
Tem toda razão. O texto é cativante, e o LFP cpmeça o ano com todo o gás, estilo, e sensibilidade.
E aí? Muito Sol na Baía?
Bjs

Unknown disse...

Juca,
Nada de sol. Meus finais de semana na Praia Grande estão sempre regados a uma gostosa chuva, como eu gosto - uma leonina que foge do sol. Por isso mesmo, de janeiro a março fico em relativa paz com a temperatura.

Unknown disse...

Blz, Ana.
Eu bem que dizia que era na Praia Grande, e Marise na Baía do Sol.
Qualquer domingo desses, de chuva mesmo, se convidado, claro, vou cozinhar prá vcs.
Levo de sobremesa uma torta de cupúassu com castanha do Pará da dona Carmem, a última doceira viva e atuante da geração de minha mãe, Ana Maria Martins, dona Lela, dona Umbelina e outras fadas da doceria regional.
Da geração seguinte, está aí para adoçar nosssa vidas a tia Celeste Klautau Guimarães, irmã do Afonso, maravilhosa.
Bjs

(ah!...vc é leonina, é? Nem parece...rsrs)

Anônimo disse...

Juvencio,
Parece mentira, mas fazendo as contas já estou quase 15 anos fora de Belém. Voltei a morar em Belém em 2001 (9 meses), mas arrumei as malas e ganhei o mundo de novo. Posso te dizer que durante todos estes anos nao teve (e tem) um dia que nao pense na minha cidade, nos meus amigos, na minha familia. As lembrancas sao muitas e, posso dizer, muito boas.
Mas a cada retorno a minha cidade sinto uma mistura de amor e ódio. Amor por que me sinto em casa; cada esquina é uma estória, uma lembranca feliz. Mas confesso que também nao reconheco mais a cidade que deixei no início dos anos 90. A forma que ela tem tomada nao me agrada, me entristece, me deixa puto mesmo. O artigo do Lúcio traduz bem estas mudancas.
Toda vez que volto de Belém pro lugar que escolhi morar, leio e releio um poema do Ferreira Gullar chamado Praia do Cajú que me faz sempre pensar que quem mudou fui só eu ou a cidade que deixei.
abracos,

Unknown disse...

Pô, nunca pensei que fosse tudo isso. Caramba!
Vc tem toda razão, amor e ódio, mais ódio que amor pois o tempo vai diminuindo, com diz o LFP.
Ademais, fizestes a "travessia",
e os símbolos da barbárie incomodam esses que atravessaram.
Na hora em que escrevias este comentário eu escrevia sobre o entorno de onde moro.(A Praça É Nossa).Foda!

Tento me "vingar" através dos meus filhos.
Dos quatro, duas já se foram, moram em Sampa. O caçula já quer abrir. Foi passar as férias em Curitiba, em 2005, e na volta perguntei-lhe o que mais havia gostado. Ele me olhou e disse, calmo do jeito que é: Pai, da educação das pessoas.
(Acaba de me ligar, de Cristalina, 90 km de Brasília, de u posto de gasolina na beira da estrada. Chove. Ele volta de um casamento do primo mais velho, em Patos de Minas, MG. Anda esse moleque,17)
Acho que ele vai simbora. Torço prá isso.
Vou atrás do poema do Ferreira Gullar.

(ps= Lembre de vc dia desses.Uma irmã que mora em Petropólis veio passar o natal conosco e trouxe um isopor de embutidos, comprados aos alemães da subida da serra.
Salsichões brancos ao curry,salsichas vermelhas, mostarda preta caseira, um joelho de porco, um salpicão em forma de salame que nunca tinha visto, e uma costelinha defumada. Essa costelinha...putz!
Tudo ainda está rendendo...rs

Abraços.

Anônimo disse...

Fale Juvencio,

A "travessia" nao é tao facil assim. Saudade, distancia e um sentimento que poderia estar ai na luta sempre batem na porta.
ps:
1) Minha írma veio aqui também pro Natal e ano. Trouxe consigo charque. Preparamos uma super feijoada com estas coisas de porco que os Alemaes tem aqui. A feijoada ficou uma delicia. Comi metade da panela e a outra metade separei em pequenas porcoes pra comer ate ir ai em Belém de novo. Te prometo que da proxima vez levo comigo uma dessas costelas defumadas pra ti e tomamos uma cerveja juntos.
Abracos

Unknown disse...

rsrs...esse papao rende, Ricardo.
Quando fazia o mestrado na UFRJ, mamãe mandava os hangos regionais.O patoso, a maniçoba, o camarão do Maranhão, que guaradavamos cuidadosamente para os aniversários da pequena família,datas como o Círio, etc.
Mas, vivendo com as bolsas da merda, chegava o dia 28, 29 do mes, qualquer mes, a grana acabava e só restavam os acepipes...rs
O jeito - e que jeito- era avançar nas coisas gostosas...rs
Muito bem. Fico aguardando as costelinhas daí, e a sua companhia.
Abs e boa semana prá vc.