24.6.09

Sarney, o Homem Incomum

Por Leandro Fortes, em seu blog, sob o título acima.

Há anos, nem me lembro mais quantos, os principais colunistas e repórteres de política do Brasil, sobretudo os de Brasília, reputam ao senador José Sarney uma aura divinal de grande articulador político, uma espécie de gênio da raça dotado do dom da ponderação, da mediação e do diálogo. Na selva de preservação de fontes que é o Congresso Nacional, estabeleceu-se entre os repórteres ali lotados que gente como Sarney – ou como Antonio Carlos Magalhães, em tempos não tão idos – não precisa ser olhada pelas raízes, mas apenas pelas folhagens. Esse expediente é, no fim das contas, a razão desse descolamento absurdo do jornalismo brasiliense da realidade política brasileira e, ato contínuo, da desenvoltura criminosa com que deputados e senadores passeiam por certos setores da mídia.
Olhassem Sarney como ele é, um coronel arcaico, chefe de um clã político que há quatro décadas domina a ferro e fogo o Maranhão, estado mais miserável da nação, os jornalistas brasileiros poderiam inaugurar um novo tipo de cobertura política no Brasil. Começariam por ignorar as mentiras do senador (maranhense, mas eleito pelo Amapá), o que reduziria a exposição de Sarney em mais de 90% no noticiário nacional. No Maranhão, a família Sarney montou um feudo de cores patéticas por onde desfilam parentes e aliados assentados em cargos públicos, cada qual com uma cópia da chave do tesouro estadual, ao qual recorrem com constância e avidez. O aparato de segurança é utilizado para perseguir a população pobre e, não raras vezes, para trucidar opositores. A influência política de Sarney foi forte o bastante para garantir a derrubada do governador Jackson Lago, no início do ano, para que a filha, Roseana, fosse reentronizada no cargo que, por direito, imaginam os Sarney, cabem a eles, os donatários do lugar.
José Sarney é uma vergonha para o Brasil desde sempre. Desde antes da Nova República, quando era um político subordinado à ditadura militar e um representante mais do que típico da elite brasileira eleita pelos generais para arruinar o projeto de nação – rico e popular – que se anunciava nos anos 1960. Conservador, patrimonialista e cheio dessa falsa erudição tão típica aos escritores de quinta, José Sarney foi o último pesadelo coletivo a nós impingido pela ditadura, a mesma que ele, Sarney, vergonhosamente abandonou e renegou quando dela não podia mais se locupletar. Talvez essa peculiaridade, a de adesista profissional, seja o que de mais temerário e repulsivo o senador José Sarney carregue na trouxa política que carrega Brasil afora, desde que um mau destino o colocou na Presidência da República, em março de 1985, após a morte de Tancredo Neves.
Ainda assim, ao longo desses tantos anos, repórteres e colunistas brasileiros insistiram na imagem brasiliense do Sarney cordial, erudito e mestre em articulação política. É preciso percorrer o interior do Maranhão, como já fiz em algumas oportunidades, para estabelecer a dimensão exata dessa visão perversa e inaceitável do jornalismo político nacional, alegremente autorizado por uma cobertura movida pelos interesses de uns e pelo puxa-saquismo de outros. Ao olhar para Sarney, os repórteres do Congresso Nacional deveriam visualizar as casas imundas de taipa e palha do sertão maranhense, as pústulas dos olhos das crianças subnutridas daquele estado, várias gerações marcadas pela verminose crônica e pela subnutrição idem. Aí, saberiam o que perguntar ao senador, ao invés de elogiar-lhe e, desgraçadamente, conceder-lhe salvo conduto para, apesar de ser o desastre que sempre foi, voltar à presidência do Senado Federal.
Tem razão o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao afirmar, embora pela lógica do absurdo, que José Sarney não pode ser julgado como um homem comum. É verdade. O homem comum, esse que acorda cedo para trabalhar, que parte da perspectiva diária da labuta incerta pelo alimento e pelo sucesso, esse homem, que perde horas no transporte coletivo e nas muitas filas da vida para, no fim do mês, decidir-se pelo descanso ou pelas contas, esse homem comum é, basicamente, honesto e solidário. Sarney é o homem incomum. No futuro, Lula não será julgado pela História somente por essa declaração infeliz e injusta, mas por ter se submetido tão confortavelmente às chantagens políticas de José Sarney, a ponto de achá-lo intocável e especial. Em nome da governabilidade, esse conceito em forma de gosma fisiológica e imoral da qual se alimenta a escória da política brasileira, Lula, como seus antecessores, achou a justificativa prática para se aliar a gente como os Sarney, os Magalhães e os Jucá.
Pelo apoio de José Sarney, o presidente entregou à própria sorte as mais de seis milhões de almas do Maranhão, às quais, desde que assumiu a Presidência, em janeiro de 2003, só foi visitar esse ano, quando das enchentes de outono, mesmo assim, depois que Jackson Lago foi apeado do poder. Teria feito melhor e engrandecido a própria biografia se tivesse descido em São Luís para visitar o juiz Jorge Moreno. Ex-titular da comarca de Santa Quitéria, no sertão maranhense, Moreno ficou conhecido mundialmente por ter conseguido erradicar daquele município e de regiões próximas o sub-registro civil crônico, uma das máculas das seguidas administrações da família Sarney no estado. Ao conceder certidão de nascimento e carteira de identidade para 100% daquela população, o juiz contaminou de cidadania uma massa de gente tratada, até então, como gado sarneyzista. Por conta disso, Jorge Moreno foi homenageado pelas Nações Unidas e, no Brasil, viu o nome de Santa Quitéria virar nome de categoria do Prêmio Direitos Humanos, concedido anualmente pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República a, justamente, aqueles que lutam contra o sub-registro civil no País.
Em seguida, Jorge Moreno denunciou o uso eleitoral das verbas federais do Programa Luz Para Todos pelos aliados de Sarney, sob o comando, então, do ministro das Minas e Energia Silas Rondeau – este um empregado da família colocado como ministro-títere dentro do governo Lula, mas de lá defenestrado sob a acusação, da Polícia Federal, de comandar uma quadrilha especializada em fraudar licitações públicas. Foi o bastante para o magistrado nunca mais poder respirar no Maranhão. Em 2006, o Tribunal de Justiça do Maranhão, infestado de aliados e parentes dos Sarney, afastou Moreno das funções de juiz de Santa Quitéria, sob a acusação de que ele, ao denunciar as falcatruas do clã, estava desenvolvendo uma ação político-partidária. Em abril passado, ele foi aposentado, compulsoriamente, aos 42 anos de idade. Uma dos algozes do juiz, a corregedora (?) do TRE maranhense, é a desembargadora Nelma Sarney, casada com Ronaldo Sarney, irmão de José Sarney.
Há poucos dias, vi a cara do senador José Sarney na tribuna do Senado. Trêmulo, pálido e murcho, tentava desmentir o indesmentível. Pego com a boca na botija, o tribuno brilhante, erudito e ponderado, a raposa velha indispensável aos planos de governabilidade do Brasil virou, de um dia para a noite, o mascate dos atos secretos do Senado. Ao terminar de falar, havia se reduzido a uma massa subnutrida de dignidade, famélica, anêmica pela falta da proteína da verdade. Era um personagem bizarro enfiado, a socos de pilão, em um jaquetão coberto de goma.
Na mesma hora, pensei no povo do Maranhão.

10 comentários:

Prof. Alan disse...

A mais completa tradução do Coroné Sarney, Parente!.

Tenho pensado muito sobre um assunto: Sarney tem pervertido minha moral cristã. Ao resistir a todo custo, arrastando o Brasil para o mesmo buraco lodoso em que ele e sua família entranharam o Maranhão, Sarney me obriga a rezar pela sua morte.

Anônimo disse...

O texto reproduz na íntegra o que penso de Sarney e traz à luz o "modus operandi" de diversos feudos no Norte e Nordeste deste miserável país. Políticos que enriquecem a custa da ignorância do Povo e ainda posam de "salvadores da pátria", aqui no Pará temos mostras disso. E temos outros culpados além dos políticos, pois se existem corruptos é porque existem corruptores, empresários inescrupulosos que enriquecem dando suporte a esses políticos safados. Parabéns ao autor!

Anônimo disse...

Alan, devemos sim é parabenizar o Juca pela coragem em denunciar o velho coronelismo, o mandonismo e tudo o que é de mais atrazado na política brasileira; Apoio o presidente Lula pelo olhar de inclusão dos mais pobres e despossuidos na política brasileira, mas fiquei decepcionada com sua defesa de Sarney. Esqueça de desejar a morte de Sarney, vamos superar este tempo apesar dele e de uma máfia que lhe acompanha.

Anônimo disse...

Parabéns, o artulista conseguiu de forma objetiva e clara deslindar o carater e a dimensão do Senador Sarney , que hoje esta mostrando as escancaras de todo o Pais, aquilo que poucous sabiam. Seu epilogo será do tamanho das ilicitudes que fez neste nesta nação por 04 decadas.

Anônimo disse...

O Pará não perde em nada para o maranhão, até ganha quando se fala em corrupção.

Anônimo disse...

Impressionante o texto ! Maravilhoso.

Prof. Alan disse...

Cara Anônima das 10:57, quanto à decepção com o Lula, a minha ocorreu há alguns anos atrás, quando ele beijou a mão do Jader Barbalho, o mesmo sujeito que o PT tanto nos ajudou a combater, por ocasião da crise da SUDAM, na qual a intenção do governo FHC era proteger os malfeitores que ocupavam DAS e colocar em disponibildade os servidores de carreira - apenas para dar uma resposta à opinião pública...

No que toca a esquecer de desejar a morte de Sarney, eu gostaria muito, eis que é um sentimento aziago. Mas sempre me lembro do Nilson Chaves cantando: os velhos em Brasília não podem ser eternos...

É Sarney que não me deixa escolhas. Aos 79 anos, ele insiste em embriagar-se com o vinho do poder para manter o vício de malfeitor. Espero estar aposentado já aos 60. E olhe lá!

Yúdice Andrade disse...

Alguém já concedeu uma medalha ao Leandro Fortes por este texto?

Anônimo disse...

Este texto é quase uma ejaculação..

Raphael Teixeira disse...

A tese dos quatro setores: A melhor desde que girondinos e jacobinos sentaram-se em lados opostos... é de Joelmir Beting:

O escandalômetro dos congressistas - e não do Congresso - comprova que temos quatro setores na sociedade brasileira.

Primeiro setor: recursos públicos para fins públicos - o governo.

Segundo setor: recursos privados para fins privados - o mercado.

Terceiro setor: recursos privados para fins públicos - o voluntariado.

Quarto setor: recursos públicos para fins privados - a corrupção, a ladroagem, a velha oligarquia sanguessuga da miséria nacional.