O português João Pereira Coutinho volta às páginas do Quinta, na Pensata da Folha de São Paulo. Um exemplo do legado das quadrilhas que assaltam os cofres públicos ao povo brasileiro.
A normalidade do medo
Fui assaltado em S. Paulo em outubro passado. Sobrevivi. Os contornos da história são fáceis de contar. Cheguei a Guarulhos pelo final da tarde. Tomei um táxi para o centro. Cheguei ao hotel (curiosamente chamado L'Hotel, junto à Paulista), subi os degraus, entrei no lobby. Junto ao balcão, com uma mocinha sorridente que já previa a minha chegada, disse as boas tardes habituais. Então senti uma mão estranha e insistente a puxar pela sacola do laptop, que eu levava a tiracolo. Julguei que fosse um empregado do hotel mais apressado, solícito na sua ajuda ao patrício.
Não era. Um marginal de 15 ou 16 anos, visivelmente mais assustado do que eu, apontava uma arma que era maior do que ele. "É só o laptop", disse o cavalheiro. Eu suspirei fundo, recusei a ordem e, com um golpe certeiro, imobilizei o meliante, que voou dois metros até aterrar na calçada da rua, ensanguentado e inerte.
Mas só na minha imaginação. Em segundos, larguei a sacola, aconselhei calma e ele correu dali para fora. Houve suspiros no lobby, ninguém fora morto ou ferido. O hotel prometeu assumir todas as suas responsabilidades, pagando o prejuízo. As promessas foram como vieram. Pensando bem, esse foi uma espécie de segundo assalto.
Relembro essa história ao ler na última "Vanity Fair" um texto assombroso sobre o crime em S. Paulo. Escrito por William Langewiesche, tem como título "City of Fear" ("Cidade do Medo"), e é uma reconstituição pungente dos dias de terror que a cidade viveu no ano passado, quando o PCC paralisou a vida dos paulistanos. Não existe nenhuma informação que os brasileiros, e sobretudo os habitantes de S. Paulo, não conheçam já por experiência própria: para William Langewiesche, o PCC só existe porque não existe uma política prisional digna de nome; e porque o Estado não tem o monopólio da violência na cidade, permitindo que no seu seio cresçam organizações criminosas que se constituem como estados dentro do Estado. Exatamente como sucedeu com a Máfia italiana, que soube ocupar o vazio político e policial durante a construção, e a unificação, da Itália moderna.
Um pormenor, porém, parece escapar a Langewiesche --e esse pormenor é, pessoalmente falando, o traço mais assustador da criminalidade brasileira. Nos dias seguintes à minha experiência no hotel, eu contei a história a amigos e colegas de ofício que sorriam, e até riam, de todo o episódio. E, com naturalidade impressiva, todos eles relatavam uma lista generosa de assaltos, agressões e até sequestros-relâmpagos que sofreram no passado. Pior: que sofreram no passado e que esperavam continuar a sofrer no futuro, uma inevitabilidade serena e resignada. A minha experiência era um batismo, e um pequeno batismo, que fazia parte da paisagem.
Não nego que seja. Mas também não nego que existe algo de profundamente errado quando o crime se converte numa rotina comparável ao tráfego, ou à poluição urbana. E quando o roubo não é mais do que uma espécie de imposto informal que os brasileiros têm de pagar para viverem no seu próprio país.
A cidade do medo? Quase. Talvez o drama de S. Paulo não esteja no medo propriamente dito; mas na forma como o medo se transformou há muito em normalidade.
8 comentários:
Bom dia amigo. Obrigada.
Esse "quase", do texto, salvou a minha alma.
Bjs.
Juvencio,
Muito bom este texto.
Aqui na Alemanha, as pessoas nao entendem quando digo que o que mais gosto do País deles é a liberdade de poder andar nas ruas despreocupado, sem olhar pros lados, sem entrar em pânico quando me encontro sozinho numa rua escura.
Claro que aqui nao estamos imunes a roubos e outras formas de violência, mas confio na Policia e na justica pra resolver estas questoes. Alias, os impostos aqui nao sao de brincadeira e as instituicoes deles também.
Voltei ha pouco de Belém e percebi que por duas semanas fiquei prisioneiro ou refém do medo na minha própria casa.
Até quando hein?!
abracos
ricardo
Juvêncio, alguma semelhança com a nossa Nova Deli não é mera coincidência. Outro dia Elias Pinto escreveu sobre a sensação de insegurança que os tucanos insistiam em propalar e que todos nos sabemos que não é só sensação. A violência que Belém vive já está fora dos limites a muito tempo e não presenciamos nenhuma ação efetiva para, no mínimo, minimizar essa desordem que está nos vitimando. O atual governo que fez um forte apelo à área de segurança pública como uma de suas prioridades, ainda não colocou em prática planos e ações que contribuam para o restabelecimento da segurança. Essa é nossa triste realidade que faz de Belém a última colocada no quesito qualidade de vida e segurança, segundo dados da FGV.
Carlos André
Pô, Ricardo, é que os alemães não sabem o que é o terceiro mundo.Infelizmente andastes vendo o que escrevo.É uma merda mesmo.
E o portuga escreve muito bem.
Abs, Ricardo.
É pena,Carlos André, mas a prioridade é a onda, o lero, o papo furadésimo,a "passação de mão" sobre as cabelas estreladas como nos casos de Coelho e Porto, e a jagunçada da PM direto na segurança particular de agressores contumazes e tudo o mais que vemos, ainda...
Juva, me lembrei ao ler este texto do que passei há uns meses atrás aqui em Santarém e que relatei no meu blog (quem não leu, pode acessar este link: http://jotaninos.blogspot.com/2006/11/reflexes-de-um-neo-assaltado-beijando.html). Imagine que estou numa cidade paradisíaca onde a "onda de violência" ainda se resume a confrontos de gangues de periferia. Não temos ainda uma situação calamitosa como Belém e alhures, mas assim que a BR-163 for asfaltada (um dia será), o ônus do nosso progresso, decerto será o fim do nosso sossego
Claroque me lembro deste assalto que gerou aquela cronica deliciosa, e comentários idem...rs.
Grande abraço, Grego.
Tô aí de novo mês que vem.
Vamos ver se desta vez a gente se encontra com calma, pois o corre corre daquele dia no HR só deu prá lhe dar um abraço.
Tenho me debruçado sobre diagnósticos e soluções adotadas para um fenônemo reativo e plenanamente previsível: a escalada da violência em nossas capitais.
É tema árido, complexo e com efeitos devastadores.
Como sua solução ou o caminho dela está circunscrito à política. E, como a prática política é efeito e não causa. Arrisco-me a dizer: estamos todos reféns por opção fora de nosso agrado.
Sou cristão.
Vi estarrecido a tentativa de criminalizar gente de paz por portar uma arma no porta-luvas do carro; no criado mudo da casa; na entrada da portaria do Sítio de um conhecido.
Quando o governo decide fazer, os resultados aparecem.
No Rio, onde tenho primos e sempre os visitava em janeiro. O atual governador Sérgio Cabral, tem como atividade prioritária, comparecer aos velórios espalhados em todas suas zonas.
No Rio Grande do Sul, entretanto, Yeda mandou ver. Derrubou em 75% as ocorrências que insistiam em sitiar os gaúchos portoalegrenses.
Aqui no DF. Arruda mandou sitiar a cidade. Detalhe: Colocou a tropa de policiais apoiados com Helicópteros helicópteros para trabalhar.
É blitz para todo lado.
Resultado: 97% de capturas de foragidos judiciais, algo parecido na apreensão de drogas e índices açoitados rés ao chão de homicídios.
Botequim aqui fecha meia noite e ponto.
Basta! É vontade política e à merda para vagabundos.
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